Índia sem pólio: parecia impossível até que foi feito
mar. 25, 2024
A jornada da Índia – de epicentro mundial de uma doença viral altamente infecciosa a país livre da poliomielite – foi como pisar em ovos: cada passo era importante.
Em 27 de março de 2014, a nação foi oficialmente certificada como livre do vírus selvagem da pólio. Esse momento crucial não foi um triunfo apenas para o próprio país, mas para o mundo inteiro, pois provou a viabilidade biológica e técnica da erradicação da pólio, além de ter aberto caminho para que toda a região do sudeste asiático da OMS fosse certificada como livre do vírus selvagem.
Neste ano, em 27 de março, comemoramos o aniversário de 10 anos dessa conquista, servindo como um poderoso lembrete da vontade e do compromisso coletivos que viabilizaram a superação de um desafio de saúde aparentemente intransponível.
Passei quase seis anos enriquecedores da minha vida servindo como gerente do Projeto Nacional de Vigilância da Pólio para a OMS na Índia. O meu trabalho envolvia a prestação de assistência técnica e orientação estratégica ao programa nacional. Também era responsável pela vigilância do poliovírus, monitorando campanhas de vacinação em massa, elaborando medidas e estratégias corretivas e trabalhando em estreita colaboração com os colegas do governo em todos os níveis para garantir que cada criança fosse vacinada com doses suficientes para aumentar sua imunidade. Anualmente, distribuímos cerca de 1 bilhão de doses da vacina antipólio a 172 milhões de crianças ao longo dos quatro anos que antecederam o último caso. E muito mais nos anos seguintes.
Ao refletir sobre essa jornada, houve vários fatores que contribuíram para o sucesso monumental da erradicação da pólio na Índia. O primeiro – e algo fundamental – foi o compromisso do governo, que consistentemente se traduziu em ação administrativa diligente no nível operacional. Até os administradores distritais estavam totalmente alinhados e comprometidos com medidas corretivas baseadas em evidências, considerando lacunas e desafios programáticos e, em seguida, comprometendo-se a resolvê-los com urgência.
O segundo fator foi o sistema eficaz de múltiplas partes que nos permitiu, como parceiros, fornecer a assistência técnica necessária no nível de implementação. Tínhamos as evidências: informações em tempo real no nível operacional, inclusive dados de monitoramento, que orientaram ações corretivas oportunas. Esses dados foram bem utilizados para recomendar mudanças que o governo aceitou. Devo enfatizar a importância da disposição individual e institucional de fazer mudanças com base em evidências.
Também nos concentramos na infraestrutura que poderia gerenciar adequadamente o envolvimento da comunidade e implantar os influenciadores locais certos, o que levou a uma ação coletiva. Além disso, uma força de trabalho técnica e gerencial eficaz foi fundamental para garantir que as ideias se transformassem em ação. Ao mesmo tempo, a força de trabalho foi ajustada para atender às necessidades do programa, o que nos ajudou, como parceiros, a trabalhar de forma integrada em nossos respectivos campos.
O ano de 2011, no qual o último caso de poliomielite foi confirmado, gerou grande ansiedade para nós na Índia, mas também foi um período de grande esforço na busca pelo vírus. Quanto mais tempo se passasse desde o último caso confirmado do vírus selvagem, maiores seriam os desafios políticos para qualquer distrito ou estado notificar um caso de pólio. E a mídia, por sua vez, começou a criar expectativas que elevaram a tensão ao nível do Monte Everest. Parecia que estávamos prendendo a respiração enquanto trabalhávamos.
O fim da pólio na Índia foi um grande impulso para a confiança da população na saúde pública do país, para o Ministério da Saúde, para todos os profissionais de saúde, para os cuidadores e para todos os nossos parceiros. Nossos esforços valeram a pena. O êxito foi simplesmente excepcional. A conquista recebeu muito apoio e entusiasmo dos ministros da saúde e dos países da região do Sudeste Asiático, e isso foi muito útil para o programa da pólio em várias frentes. Sentimos a dupla sensação de vitória da humanidade sobre um desafio, a solidariedade regional e global, e a ação coletiva dos países no apoio e incentivo para a erradicação da pólio na Nigéria, no Afeganistão e no Paquistão.
Acho que o maior aprendizado foi que, quando países inteiros e suas lideranças trabalham em uníssono, em direção a uma visão compartilhada de um futuro mais saudável para nossos filhos, um senso de responsabilidade mútua é automaticamente estabelecido. Todas as partes se sentem responsáveis por seus próprios papéis.
Foi sempre um processo constante de avaliação e aperfeiçoamento do programa.
E parecia impossível até conseguirmos. É assim que me sinto hoje sobre a situação no Afeganistão e no Paquistão – os dois países onde a pólio ainda é endêmica.
O caminho repleto de desafios também apresenta muitas oportunidades que precisamos aproveitar. Com o nível mais baixo já registrado de transmissão do poliovírus selvagem, diversidade genética e disseminação geográfica, temos uma janela de oportunidade real para acabar com a pólio. Os esforços dos nossos corajosos profissionais de saúde na linha de frente e o compromisso político contínuo dos líderes em todos os níveis do programa nos aproximaram muito do nosso objetivo.
Mas sabemos que ainda há trabalho a ser feito para evitar que o vírus volte a causar paralisia. Isso significa vacinar todas as crianças contra a pólio o suficiente para aumentar sua imunidade, usar evidências de campo para adaptar nossa abordagem programática, estar dispostos a fazer mudanças, manter uma vigilância altamente rigorosa do poliovírus e, o mais importante, garantir que todos – desde os mais altos cargos políticos até a mídia, os doadores e as comunidades – trabalhem em conjunto para acabar com a doença de uma vez por todas.
A constante ameaça de que o vírus se espalhe e deixe crianças paralíticas em todo o mundo é um alerta que não podemos ignorar. Ela nos mostra que o vírus da pólio é persistente e se fortalece quando as crianças são subimunizadas. Também serve para nos lembrar que precisamos aperfeiçoar constantemente o programa e buscar incessantemente as crianças que deixaram de ser vacinadas. Isso simplesmente tem que continuar, ainda mais quanto temos um alto nível de controle sobre o vírus, para que a complacência não nos desvie do nosso caminho.
Há grandes mudanças programáticas em jogo tanto para o Afeganistão quanto para o Paquistão em 2024, especialmente com base em esforços conjuntos para eliminar o vírus por meio da abordagem de categorização de risco recomendada pelo Grupo Técnico Consultivo. Temos em nossas mãos a possibilidade de, mais uma vez, alcançar o impossível. Enquanto o vírus existir, não há espaço para erros.
Mais uma vez, parece que estamos pisando em ovos. Cada um dos nossos passos é extremamente importante.